Uma breve morte

Às nove e meia da noite eu senti o corpo de meu marido cair na cama ao meu lado e afundar no colchão, deixando escapar um suspiro ao encostar a cabeça no travesseiro.

Era a segunda vez no mês que ele dormia na cama, pois das outras vezes cochilou no sofá acostumado com as dores no corpo, ou na mesa de seu escritório sob os papéis amontoados.

Eu senti os seus braços repousarem em minha cintura e sua barba espetar de leve o meu pescoço. Senti um hálito quente e por fim ouvi sua respiração ficar mais sonolenta. Eu consegui visualizar sua boca entreabrir devagar dando espaço ao sono que o consumiu.

Eu não dormi àquela noite, e como poderia?! Meu coração vibrava apenas em saber que meu marido estava ali parado, compartilhando seu momento de não-existência comigo (quando dormimos deixamos de pensar, de indagar, e ficamos como que mortos, sem existir, apenas corpo, apenas carne ainda quente, mas sem identidade. E quando acordamos, eis que redescobrimos o mundo abrindo-nos os olhos, e assim a máquina humana como que nasce de uma breve morte). E desse jeito que eu o vi redescobrir o mundo. Abriu os olhos cor de avelã, apertando-os por causa do sol, piscando múltiplas vezes, até que recaiu em mim os olhos sobre os meus e sorriu jovialmente. Eu vi um rapaz, o doce traço de inocência e felicidade em seus olhos, mas por trás enxerguei também um homem cansado e exausto do café aguado do hospital, de um homem casado com sua profissão.

Eu tornaria a ver aqueles olhos só depois de muitos dias. Antes de ele se levantar não dissemos nada, não havia o que dizer. Conversamos pelo olhar e nos despedimos pelo pensamento. Eu teria um longo dia e precisava memorizar o seu rosto e guardá-lo comigo.

E ele? Bem, tinha um corpo gelado e estraçalhado que precisava rever.